Análise da obra "O filho do homem" de René Magritte.
Esta
análise busca estabelecer relações simbólicas entre a pintura de René Magritte
e as considerações acerca da discussão sobre o homem contemporâneo na obra “O
que é o contemporâneo?” de Giorgio Agamben.
Análise
da Imagem:
René Magritte
(1898 – 1967) foi um belga, artista do surrealismo e autor desta pintura datada
do ano de 1964. A obra artística pertence ao movimento surrealista lançado em
1924 por André Breton, que consiste na valorização da expressão espontânea do
pensamento, atribuindo o desejo do inconsciente a criação, que ilustra desejos,
instintos e renovação de valores de interpretação da realidade. O movimento
surrealista é tido como uma resposta ao racionalismo e teve forte influência da
psicanalise de Sigmund Freud.
Na imagem é possível observar um
homem, possivelmente seja um autorretrato de René, vestindo um paletó cinza, um
chapéu-coco de mesma tonalidade, uma gravata vermelha, de pé, de costas para um
muro de pedras com um mar ao fundo. O homem tem, na frente de seu rosto, uma maçã
verde, que cobre quase totalmente sua face de maneira que apenas um pouco de
seus olhos apareça, olhando por cima da maçã. Há um detalhe no braço esquerdo,
o cotovelo parece estar invertido, como que fraturado, o que causa uma
impressão de rompimento com a uniformidade dos elementos da pintura.
René também é o autor da famosa
pintura “Isso não é um cachimbo” (1929), que apresenta uma ilustração de um
cachimbo de madeira, e provoca questionar sobre a confusão das imagens, uma vez
que o objeto ilustrado é apenas uma representação de um cachimbo, e não um
cachimbo em si.
Ao longo dos anos, diversas
releituras da obra de René foram produzidas, substituindo a maçã por copos de
cerveja, celulares, computadores, máscaras (durante o período de pandemia) numa
tentativa de expressar a atemporalidade que a obra de René conserva. A critica
principal que se faz sobre os objetos em frente a face do homem é sobre o seu
“ídolo”, passível de crítica, releituras assim promovem reflexões sobre os
interesses, desejos, anseios, medos e angústias dos admiradores que
reinterpretam e agregam à obra através dos tempos. Diante disto, o que poderia
ser mais contemporâneo que o Surrealismo, dado a valorização da necessidade de
expressão que o movimento traz?
Reflexão
historiográfica:
Primeiramente, a
cerca da maçã na frente do rosto, detalhe que caracteriza o surrealismo na
imagem, consideremos a função simbólica do “ídolo”. O homem por trás da imagem
consegue ver, de relance, o que está depois do objeto, mas apenas por cima dele,
indicando que isso interfere diretamente na sua observação (da realidade,
talvez), que condiciona o homem a interpretar sua análise a partir da
interferência. Tomando o título da obra, “O filho do homem”, é possível tecer
uma interpretação relacionada a tradição judaico-cristã da criação. A maçã, que
representa o desejo do homem, que se corrompera e abandonara o propósito divino
da criação, é posta a frente do rosto, para indicar que o desejo do homem o
impediu de seguir o plano do Éden. Ainda sobre a influência cristã na obra e
dada a expectativa do surrealismo de expressar as contradições entre o real e o
ideal, por mais que ele tente enxergar por cima do objeto, o homem se encontra
condicionado a não poder abandonar sua perspectiva.
Ora, não seria este o estabelecimento
de um diálogo com Agamben, a respeito de suas considerações acerca do homem
contemporâneo? vejamos:
“[...] o contemporâneo é aquele que
percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de
interpretá-lo, algo que, mais que toda luz, dirige-se direta e singularmente a
ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que
provém do seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 64).
A alusão proposta por Agamben é a
das trevas que permeiam o espaço e sua inexistência factual. Uma vez que o que
se observa é a distância não preenchida por luz de um espaço-tempo, dado a
distância do objeto a ser observado e o tempo de chegada de sua luz ao planeta.
Não há, portanto, espaços escuros, mas espaços com ausências de luz que, por
estarem em uma velocidade maior e em expansão, não conseguem chegar ao
contemplo do observador na Terra.
O que o homem
contemporâneo é capaz de fazer é contemplar, mesmo que “por cima do objeto”, o
seu ídolo, podendo fazer dele obra útil na interpretação. O que é posto por
Agamben é justamente a singular relação ao próprio tempo (AGAMBEN, 2009), o
homem contemporâneo tenta encontrar-se no presente, mas não consegue se
adequar. Como crítica ao Racionalismo, o Surrealismo ilustra a descoberta da
existência do ídolo, a percepção da sombra que o objeto faz diante da visão do
homem, aqui quase que originário – o natural criacionista –, como parte do
trabalho a ser empenhado pela análise do homem. A busca por se distanciar para compreender
seu estado é contemporânea, escreve Agamben:
“Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é
verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este,
nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas,
exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo,
ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o seu tempo”
(AGAMBEN, 2009, p. 58);
O contemporâneo é justamente a
relação com o intempestivo, o sentimento de não pertencimento, de não
conformidade, é em si o “olhar por cima da maçã”, a tentativa compreensão do
estado natural e do ídolo. Identificar e delimitar as coexistências entre o
presente e as relações trazidas de outros tempos é o exercício da contemporaneidade.
A pergunta de Agamben no inicio do capítulo define o principal caminho para a
interpretação deste estado, “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de
tudo, o que significa ser contemporâneo?” (AGAMBEN, 2009, p. 57).
O último detalhe
em destaque, é para a representação do braço esquerdo do homem na obra de René,
o que parece ser uma fratura ou uma inversão do cotovelo esquerdo. Essa
particularidade da obra dialoga muito bem com o que Agamben discorre sobre a
fratura na história, um ponto de cisão onde a linearidade se rompe, e ali se
encontra o contemporâneo. O sentimento de não conformidade com o tempo presente
(e que também não deseja estar em outro), mas retomar os costumes de outros
tempos no presente, daí o conceito de coexistência emerge, o que, por fim,
retoma ao princípio questionador da análise e o responde: o homem contemporâneo
é aquele que no estado presente conserva as sombras do que lhe é bagagem
histórica, filosófica, artística, ideológica e tenta organiza-las dentro de sua
perspectiva para dar sentido ao mundo e sua existência.
Referências:
AGAMBEN,
Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
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